Recuperação Judicial – Lições preliminares – Lição IV

Lição IV – Do administrador judicial
Dispõe o art. 52, inciso I, da Lei nº 11.101/2005 – LRF, que o juiz, no mesmo ato em que deferir o processamento da recuperação judicial, nomeará o administrador judicial.
Aqui, ao meu sentir, situa-se o ponto crucial para o sucesso ou insucesso do procedimento. O magistrado presidente deverá depositar especial atenção a este ato, pois a nomeação de um exímio administrador lhe dará a certeza e tranquilidade para a regular e célere marcha processual, ao passo que um administrador imperito, desidioso ou ímprobo certamente lhe causará dissabores, além de elevar o volume do trabalho, que de regra já é extenso. Como leciona o festejado professor Manoel Justino Bezerra Filho: Do administrador depende, em grande parte, o bom ou mau resultado da falência ou da recuperação.1
Necessário, em princípio, termos em mente que o administrador judicial não funciona como advogado no processo. É, na verdade, auxiliar do juízo. Uma vez empossado, cabe-lhe colaborar com a administração da Justiça e não representar a recuperanda, credores ou quem quer que seja. É a figura do particular exercendo um ‘munus’ público e, como tal, submetendo-se aos deveres – mais administrativo-processuais do que negociais – que a lei lhe impõe.2
A despeito de melhor que a utilizada pela lei anterior (comissário), a nomenclatura atual por vezes fomenta equívocos, sobretudo aos leigos. É porque o termo administrador dá azo ao errôneo entendimento de que ele passará a administrar a empresa em recuperação, o que ordinariamente não ocorre. A devedora, após o deferimento do processamento da recuperação, continuará funcionando normalmente, sob a administração de seus sócios ou gerentes, sem a ingerência administrativa do administrador judicial. Este detém apenas a função fiscalizadora; não pratica, pois, atos de gestão.
Qualquer pessoa plenamente capaz poderá exercer o munus de administrador judicial, ressalvados os impedidos legalmente que adiante veremos. Não há necessidade de ser advogado. Exige a lei (art. 21) apenas que seja profissional idôneo. No entanto, o legislador apontou um norte para o juiz, consignando que a nomeação recairá preferencialmente entre advogado, economista, administrador de empresas ou contador. Veja que a enumeração (numerus clausus) é apenas sugestiva, não vinculando o magistrado presidente do feito, que poderá optar por profissional de outras áreas diante do caso concreto.
Não há, sequer, uma preferência em sentido estrito, a implicar que, havendo na localidade profissional de qualquer uma daquelas áreas, o juiz estará obrigado a escolhê-lo e, somente se não houver ninguém que exiba uma daquelas qualificações, poderá escolher quem não as tenha. Apenas se considerou que tais profissionais, pela formação que em tese tiveram, estariam mais aptos ao exercício das funções de administrador judicial. No caso concreto, pode ser bem diferente.3
Na prática, porém, vejo que o conhecimento jurídico amplo se faz necessário ao administrador. Como dito, não irá ele administrar a empresa recuperanda (gestão). Terá, no entanto, incumbências em todo o procedimento da recuperação, com a emissão de pareceres jurídicos;
promoverá a verificação e classificação de créditos, devendo, assim, conhecer do direito obrigacional e contratual, bem assim do direito do trabalho; presidirá, ademais, a assembleia geral de credores, o que exige conhecimentos jurídicos para o pronto esclarecimento aos votantes; e, sem dúvidas, deverá conhecer profundamente do direito concursal (recuperação e falência), que inclui direito material e processual. Sem essa cognição, tenho por dificultado o trabalho do administrador judicial, o que poderá inviabilizar todo o procedimento, causando prejuízos aos inúmeros interessados na recuperação judicial.
Recomenda-se, ainda, que o administrador, como auxiliar que é, sediar-se próximo do juízo (onde também estará o principal estabelecimento da recuperanda), a fim de facilitar a comunicação, tendo acesso ao gabinete e comunicando-se com o juiz por telefone, e-mail e outros meios. Poucas não foram as vezes em que, nos feitos que presidi, liguei para o administrador judicial a fim de indagar-lhe sobre determinada questão, ou mesmo para convidá-lo ao meu gabinete para discussão de matéria. Vale dizer: o diálogo entre juiz e administrador judicial não pode se liminar ao bojo dos autos. Ele mais se equipara ao assistente de juiz do que aos procuradores das partes. Dessarte, nomear pessoa (física ou jurídica) sediada noutra unidade da federação não me parece acertado, também por dificultar o acesso dos credores ao administrador.
Outrossim, deverá ser pessoa da maior confiança do juiz nomeante. Idôneo é o que é apropriado, adequado, conveniente, capaz, suficiente, merecedor. A idoneidade é técnica e moral. O art. 30 da LRF veda o exercício da função de administrador judicial a quem nos últimos cinco anos, no exercício do cargo de administrador judicial ou de membro de Comitê em falência ou recuperação judicial, foi destituído, deixou de prestar contas dentro dos prazos legais ou teve a prestação de contas desaprovadas.
Também não pode funcionar aquele que tiver relação de parentesco ou afinidade até o 3º grau com o devedor (recuperando), seus administradores, controladores ou representantes legais ou deles for amigo íntimo, inimigo ou dependente (§ 1º do art. 30 da LRF). Havendo nomeação de pessoa legalmente impedida, a recuperanda, qualquer credor ou o Ministério Público poderá requerer ao juiz a substituição.
Urge consignar que a nomeação poderá recair sobre pessoa jurídica especializada. Especializada em que? Esse requisito estará atendido sempre que seu objeto social seja afim às áreas que o caput do art. 21 lista como preferenciais para o desempenho da função: advocacia, economia, administração de empresas (incluindo objetos fins, como consultoria, assessoria etc.) e contabilidade.4 Neste caso, a pessoa jurídica indicará o nome da pessoa física responsável pela condução do processo (não necessariamente sócio), a qual não poderá ser substituída sem autorização do juiz. Particularmente, não vejo muita vantagem na nomeação de pessoa jurídica, a não ser nas recuperações de empresas de grande porte.
A escolha do administrador, por não encerrar controversa jurídica, independe de fundamentação. Trata-se de ato de competência exclusiva do juiz de primeiro grau, não podendo as Cortes superiores afastar aquele da confiança do magistrado de primeiro grau e nomear outro que lhes pareça mais idôneo. Vale dizer: o mérito da escolha é do juiz a quo. Ato personalíssimo.
A posse do administrador se dará pela assinatura do termo de compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo e assumir todas as responsabilidades a ele inerentes (art. 33 da LRF). Logo que nomeado, será intimado pessoalmente para fazê-lo no prazo de 48 horas. Caso não o faça, o juiz nomeará outra pessoa para o mister.
Uma vez nomeado, o administrador não adquire estabilidade no cargo. Ao longo do processo, o juiz poderá determinar a destituição do administrador, de ofício ou a requerimento fundamentado de qualquer interessado. A destituição decorre da desobediência aos preceitos legais, descumprimento de deveres, omissões, negligência ou prática de ato lesivo às atividades do devedor ou a terceiros.5
É preciso, porém, distinguir substituição de destituição. A primeira (§ 2º do art. 30) ocorre por não preencher o administrador nomeado os requisitos legais (verificação de impedimentos). A segunda (art. 31) constitui penalidade pelo descumprimento dos deveres inerentes ao cargo. Resta, porém, uma questão: poderá o juiz afastar o administrador, sem causa justa? Ad nutum? Penso que sim. É porque o cargo exige confiança (elemento subjetivo), por isso o legislador concebeu ao magistrado a livre escolha. Natural que, rompido o vínculo de confiança, possa o juiz substituir, de ofício, o administrador, não importando este ato em penalidade. Deveras, seria contraproducente para os trabalhos a manutenção de um auxiliar cuja confiança do presidente se exauriu.
Diga-se, ainda, que o administrador judicial não pode recorrer da decisão que o substituiu ou o destituiu já que não tem direito à função, nem é parte do processo; é auxiliar que deve merecer a confiança do juiz. No entanto, para além do afastamento da função, o ato de destituição tem por efeito vedar o exercício das funções de administrador judicial por cinco anos (artigo 30 da Lei nº 11.101/05). Portanto, os fundamentos da destituição podem, sim, constituir uma ilegalidade ou abuso de autoridade, lesando direito do destituído, já que o impediriam de ser nomeado administrador em outros feitos. A solução é oferecimento de mandado de segurança pelo administrador judicial destituído, cujo pedido será apenas para desconstituir a fundamentação desabonadora e o impedimento para nomeação futura, ainda que não possa haver pretensão de retornar à função6.
O trabalho desenvolvido pelo administrador judicial é remunerado, e diferente não poderia ser já que muitas vezes árduo e volumoso, e sempre sob as responsabilidades civil e criminal. O ônus dos estipêndios é da empresa recuperanda (art. 25). Já a fixação do valor e a forma de pagamento foram atribuídas ao juiz presidente do feito (art. 24 LRF). Assim, constitui pecado capital afirmar, como ouço amiúde, que a remuneração do administrador judicial será o equivalente a 5% (cinco por cento) do total dos créditos sujeitos à recuperação. Não. A norma é aberta; não há fórmulas de fixação. Não necessariamente será um percentual; poderá ser uma quantia exata, ou prestações. O legislador apenas fixou um teto, qual seja: a remuneração não poderá exceder a 5% (cinco por cento) do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial (§ 1º do art. 24 da LRF). Tratando-se de microempresas e empresas de pequeno porte o teto será de 2% (dois por cento), conforme recente alteração da LRF pela Lei Complementar nº 147/2014).
Suponhamos, pois, que os débitos de determinada recuperanda de médio porte totalizem R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais). Qual será o valor exato do teto remuneratório? Sem dúvidas, R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais). O juiz não poderá fixar remuneração maior. Porém, estará livre para determinar pagamento inferior, v. g., R$ 100.000,00 (cem mil reais) exatos, ou optar por um percentual, por exemplo, de 3% do valor dos créditos, o que daria R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais). Veja que o legislador utilizou percentual apenas para fixar o teto, de modo que os estipêndios do administrador serão fixados em percentual ou não, a critério do juiz.
Certo que o valor não poderá ser ínfimo, tão pouco vultoso. Deverá o magistrado aqui homenagear os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Na fixação, observará a capacidade de pagamento da recuperanda, o grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para desempenho de atividades semelhantes (art. 24). É preciso lembrar que o administrador é profissional qualificado, de modo a merecer boa remuneração. Por outro lado, a recuperanda se encontra em momento de crise, de sorte que obrigá-la a elevadas prestações poderá agravar sua situação, podendo lavá-la à bancarrota, inclusive.
Não se podendo olvidar, ainda, que os auxiliares contratados pelo administrador judicial (autorizado pelo juiz) também serão pagos pela recuperanda (art. 25), tais como: advogados, contadores, avaliadores, peritos, etc. Assim, ao definir a remuneração do administrador, o juiz levará também em conta quem arcará com os estipêndios dos auxiliares do administrador, se ele próprio ou a recuperanda. Obviamente, a remuneração será maior se o administrador assumir todo o trabalho, ficando por sua conta as despesas com auxiliares.
Também a forma de pagamento ficou a cargo do magistrado, não havendo regramento específico. Sequer o disposto no § 2º do art. 24 da LRF se aplica à recuperação judicial. Reza este texto: será reservado 40% (quarenta por cento) do montante devido ao administrador judicial para pagamento após atendimento do previsto nos arts. 154 e 155 desta Lei. Evidente que o disposto não se aplica à recuperação judicial, mas tão somente à falência, já que os artigos 154 e 155 somente a esta dizem respeito: contas da realização do ativo e o relatório final da falência. Exegese adotada também pelo professor Ricardo Negrão.
Como a forma é livre, muito se exigirá da sapiência do juiz presidente do feito. Tenho recomendado a não fixação da remuneração logo no início do processo. É porque ainda não se sabe com precisão os critérios de fixação previsto no art. 24: capacidade de pagamento da devedora, grau de complexidade do trabalho. Também ainda não se poderá avaliar a qualidade do trabalho do administrador recém-nomeado. Salutar, pois, que a remuneração seja fixada a posteriori, quando então o magistrado já se terá inteirado de todo o contexto, da saúde financeira da recuperanda, do trabalho do administrador etc.
No entanto, não se pode deixar apenas para o final (dois a três anos depois) o pagamento total dos estipêndios do administrador, sob pena de lhe causar desestímulo. Como leciona o professor Ricardo Negrão: Quando as funções são exercidas por pessoas naturais, há de se entender que a remuneração do administrador e seus auxiliares tem cunho alimentar e, portanto, não se justifica que esses profissionais trabalhem, muitas vezes por meses e anos a fio, sem receber retribuição pecuniária.7
Neste contexto, no mesmo ato que o nomeio, tenho determinado o pagamento de adiantamentos mensais ao administrador judicial.
De posse da relação de credores que instrui a inicial, vejo o valor total dos créditos sujeitos à recuperação; por simples cálculo aritmético, encontro o teto por lei fixado (5%, ou 2% para microempresa). Numa cognição sumária examino os critérios da possibilidade de pagamento e complexidade do caso, chegando a um valor imaginário mínimo e razoável de remuneração. Então, divido este valor por 30 (trinta) meses – provável duração do processo. Este será o valor dos adiantamentos mensais. Repiso, não se trata da fixação da remuneração, mas sim de adiantamentos. Oportunamente, quando o encerramento do processo se avizinhar, fixarei a remuneração definitiva do administrador, devendo-se dela deduzir os adiantamentos recebidos. Ressalto que esta forma não é regra, mas apenas um indicativo. Como dito alhures, a forma de pagamento é ato discricionário do magistrado.
O administrador substituído será remunerado proporcionalmente ao trabalho realizado. Mas, se renunciar sem relevante razão não terá direito à remuneração, regra que me parece de questionável constitucionalidade. Ora, o trabalho já realizado sempre merecerá remuneração. Veja o caso dos servidores públicos, magistrados e membros do Ministério Público: quando pedem exoneração não perdem seus vencimentos do período de efetivo labor. Também não será remunerado o administrador judicial que for destituído por desídia, culpa ou dolo, ou ainda que tiver suas contas desaprovadas (art. 24, § 3º e 4º da LRF).
Mas, afinal, o que faz o administrador judicial? No que consiste o seu trabalho?
As atribuições do administrador estão elencadas no art. 22 da LRF, in verbis:
Art. 22. Ao administrador judicial compete, sob a fiscalização do juiz e do Comitê, além de outros deveres que esta Lei lhe impõe:
I – na recuperação judicial e na falência:
a) enviar correspondência aos credores constantes na relação de que trata o inciso III do caput do art. 51, o inciso III do caput do art. 99 ou o inciso II do caput do art. 105 desta Lei, comunicando a data do pedido de recuperação judicial ou da decretação da falência, a natureza, o valor e a classificação dada ao crédito;
b) fornecer, com presteza, todas as informações pedidas pelos credores interessados;
c) dar extratos dos livros do devedor, que merecerão fé de ofício, a fim de servirem de fundamento nas habilitações e impugnações de créditos;
d) exigir dos credores, do devedor ou seus administradores quaisquer informações;
e) elaborar a relação de credores de que trata o § 2o do art. 7o desta Lei;
f) consolidar o quadro-geral de credores nos termos do art. 18 desta Lei;
g) requerer ao juiz convocação da assembleia-geral de credores nos casos previstos nesta Lei ou quando entender necessária sua ouvida para a tomada de decisões;
h) contratar, mediante autorização judicial, profissionais ou empresas especializadas para, quando necessário, auxiliá-lo no exercício de suas funções;
i) manifestar-se nos casos previstos nesta Lei;
II – na recuperação judicial:
a) fiscalizar as atividades do devedor e o cumprimento do plano de recuperação judicial;
b) requerer a falência no caso de descumprimento de obrigação assumida no plano de recuperação;
c) apresentar ao juiz, para juntada aos autos, relatório mensal das atividades do devedor;
d) apresentar o relatório sobre a execução do plano de recuperação, de que trata o inciso III do caput do art. 63 desta Lei;
III – na falência: (omissis)
Veja que o administrador funciona como uma espécie de longa manus do juiz; o elo entre a devedora e credores e o magistrado. Tem por atividade precípua a fiscalização das atividades da recuperanda e, depois de aprovado, o cumprimento do plano de recuperação. Também presidirá a assembleia geral de credores. Atuará efetivamente na verificação e classificação dos créditos e consolidará o quadro-geral de credores. Poderá, ainda, excepcionalmente, vir a gerir provisoriamente a empresa devedora no caso de afastamento dos sócios gerentes (art. 65 da LRF), até que a assembleia geral delibere sobre a escolha de um gestor judicial. Todavia, além da responsabilidade criminal, o administrador judicial responderá pelos prejuízos causados à recuperanda ou aos credores por dolo ou culpa.

1 Lei de recuperação de empresas e falência : Lei nº 11.101/2005 : comentada artigo por artigo – 7ª ed. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001.

2 Negrão, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa : Volume 3 – 4ª ed. – São Paulo : Saraiva, 2009.

3 Mamede, Gladston – Direito empresarial brasileiro : falência e recuperação de empresas, volume 4 – 5ª edição – São Paulo: Atlas, 2012.

4 Mamede, Gladston – Direito empresarial brasileiro : falência e recuperação de empresas, volume 4 – 5ª edição – São Paulo: Atlas, 2012.

5 Gladston Mamede, op., cit.
6 Gladston Mamede, op., cit.

7 Op., cit.

Por Dr. J. Leal de Sousa – Juiz de Direito
Aparecida de Goiânia – Goiás, outubro de 2014
Contato: mag.jlsousa@tjgo.jus.br

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